Tanto me atraem alegria e amor e canções
»»»»» Traduzo adiante uma canção do troubadour provençal Berenguier de Palazol [Palou] (… 1164…) e nela utilizo a palavra jazer que ocorre na quinta estrofe, fazendo-a corresponder ao occitânico “eschazer”. Evidente a proximidade fónica entre estes verbos, o galego-português e o provençal, decorrentes ambos de iacere ou jacere, infinitivo latino. Jazer, bem entendido, não no seu sentido funerário actual, mas no sentido corrente na lírica galego-portuguesa do século XIII, que vem a ser o de “dormir com” ou “ter relações sexuais com”. Traduzido, o verso resulta-me em “que venhais algum dia comigo jazer” (“que vos poscatz a mos ops eschazer“), que é a pretensão masculina do troubadour: a de que a “bela dona cortesã de bom acolhimento” venha, muito em modo de amor físico, deitar-se com ele. Esta canção ausenta-se quanto a qualquer onda de neoplatonismo, mas adianta uma exclusividade preferencial: “ e nunca eu a outra beije, abrace ou tenha” (“qu’ autra baizar embrassar ni tener“). E desta mulher “única”, “inigualável”, para evocar a adjectivação de Cesário Verde, o trovador occitânico faz o retrato, sem embargo estandardizado na lírica medieva. É a “dona” em suas magnificências sempre-as-mesmas: o “parecer” humilde, o “gentil” falar, a “bela companhia” e o “bom acolhimento”, o “corpo amoroso e suave”; e a indução, que de tudo isto decorre, da sua verdade existencial: não caberia ao amante temer “falsidades ou enganos” da parte de tal “dona cortesã”, assim dotada de perfeições.
»»»»» Enfim, uma canção festiva, primaveril, impregnada de erotismo:
Tanto me atraem alegria e amor e canções
e jovialidade, desporto e cortesia
[Tan m’abelis jois et amors e chans
Et alegrier deport e cortesia]
»»»»» E a coda de três versos é uma antecipação do gozo amoroso quando “preso entre vossos braços”, assim presos amante e amada nos braços um da outra, se fundam os dois corpos no enlace erótico, sendo “os dois ambos” (“ambedui”) “um só querer”. Tanta felicidade o amante não sabe onde possa caber.
»»»»» Tradução:
Tanto me atraem alegria e amor e canções
e jovialidade, desporto e cortesia
que no mundo não acho riqueza nem bens
que me tenham de todo mais favorecido,
pois sei eu bem que a minha dona tem as chaves
de todo o bem a que eu aspiro e espero
e nada disso sem ela poderei ter.
Seu grande valor e humilde parecer
seu gentil falar e bela companhia
fizeram-me querer sempre seu senhorio
mais que outro que eu visse antes ou depois
e se o seu corpo amoroso e suave
em sua mercê não se digne reter-me,
Amor não pode de outro fazer meu prazer.
Tanto quis eu seu bem e sua complacência
e tanto a desejei e à sua companhia,
que já não creio, se quisesse afastar-me,
que minha vontade pudesse partir-se
e se eu cantei seu bem, sua honra e louvor,
ninguém me fará passar por mentiroso:
que seu valor há-de provar minha verdade.
— Bela dona cortesã de bom acolhimento
por seguro sem máculas nem desvarios:
ainda que não vos veja tanto quanto gostaria
minha imaginação alivia meus cuidados,
nela me deleito, restabeleço e repouso
e quanto não possa ver-vos com os olhos
em pensamento dia e noite vos estou vendo.
Sabeis por que não me desvio nem hesito
em vos amar minha bela doce amiga?
Porque não me caberia temer, se vos tivesse,
que misturásseis falsidades ou enganos,
por isso eu antes prefiro, e nem ouso imaginá-lo,
que venhais algum dia comigo jazer
e nunca eu a outra beije, abrace ou tenha.
Assim, se eu já me vejo preso entre vossos braços,
tanto que os dois ambos sejamos um só querer,
maravilha-me onde tanta alegria possa caber.
»»»»» Texto original:
Tan m’abelis jois et amors e chans
et alegrier deport e cortezia
que-l mon non a ricor ni manentia
don melhs d’aisso-m tengues per benanans
doncs sai eu ben que midons ten las claus
de totz los bes qu’eu aten ni esper
e ren d’aisso sens leis non posca aver.
Sa grans valors e son umils semblans
son gen parlar e sa bela paria
m’ an fag ancse voler sa senhoria
plus que d’ autra qu’ eu vis pueis ni dabans
e si-l seu cors amoros e suaus
en sa merce no- denha retener
ja d’ als Amors no-m pot far mon plazer.
Tant ai volgut sos bes e sos enans
e dezirat leis e sa companhia
que ja no cre si lonhar m’ en volia
que ja partir s’ en pogues mos talans
et s’ eu n’ ai dic onor ni be ni laus
no m’ en fatz ges per messongier tener
qu’ ab sa valor sap ben proar mon ver.
Bela domna corteza benestans
ab segur sen ses blasm’ e ses folia
sitot no-us vei tan soven com volria
mos pensamens aleuja mos afans
en que-m deleit e-m sojorn e-m repaus
e quan no-us posc estiers dels olhs vezer
vei vos ades en pensan jorn e ser.
Sabetz per que no-m ni vir no-m balans
de vos amar ma bela douss’ amia
car ja no-m cal doptar si e-us avia
que mesclessetz falsia ni engans
per qu’ eu am mais car sol albirar n’ aus
que vos poscatz a mos ops eschazer
qu’ autra baizar embrassar ni tener.
Doncs s’ eu ja-m vei dins vostres bratz enclaus
si qu’ ambedui nos semblem d’ un voler
meravilh me on poiria-l joi caber.
»»»»» [Para a transcrição do texto original foi utilizada a leitura constante da obra de Gérard Zuchetto Terre des troubadours, XII et XIII siècles, anthologie commentée, préface Max Rouquette, Les Éditions de Paris, Max Chaleil Éditeurs, Paris, 1996. Esta canção de Berenguier pode ser ouvida no CD Music of the troubadours, Ensemble Unicorn, Oni Wytars, Michael Posch, Marco Ambrosini, ed. NAXOS, 8.554257.]
António Sá
[29.08.2012/16.09.2013]