notas & noções 22 (2ª série)
cabeças vazias…
»»»»» Cabeças vazias… Acontece haver esses jovens adultos que parece terem tanto espaço vazio na cabeça que ela pode, de um momento para outro, ser a folha em branco que se introduz numa impressora para de lá sair impressa com “verdades” tão inamovíveis e absolutas quanto indigentes e alucinadas — assim são “verdades” morais e religiosas, articuladas numa ideologia que situa o indivíduo dela imbuído numa posição de poder mágico sobre os outros: aqueles que não acederam à fé, por isso são seres a limine excluídos de qualquer hipótese de diálogo entre iguais, igualmente partícipes de um princípio de razão pura; aqueles que não vivem na crença “verdadeira”, que é inamovível, única, universal. Este poder, em simultâneo mágico e totalitário, permite decidir quem pode ser espoliado dos seus bens ou simplesmente morto, sem que tal constitua um crime ou um “pecado” em termos religiosos, porque se tratará de alguém que não participa da crença “verdadeira”. E, ao fazer este repertório do poder absoluto da crença religiosa, ocorre-me, lastro de memória, que tal corresponde em tudo ao poder das instituições inquisitoriais católicas, que assombraram a Europa desde a Idade Média ao século XVIII — o advogado e comediógrafo português António José da Silva foi queimado vivo no ano de 1739.
»»»»» Não tenho verdades, tenho hipóteses de explicação para fenómenos sociais correntes, que não passam necessariamente pelos ambientes familiares, em geral medianos, moderados, humildes, mas talvez mais pelo espectacular falhanço da escola ocidental, nas suas perpétuas derivas burocráticas, massificantes, inumanas — e consequente neandertalismo da socialização escolar dos nossos tempos.
»»»»» Mas voltando a esses seres humanos radicais na sua crença demencial, sociologicamente é já conhecido que são jovens com escolaridade liceal e empregos standard, exigindo mesmo alguma especialização. E quanto a eles, tenho sobretudo esta pergunta: qual o modo de chegarem a uma idade, compreendida entre os vinte-trinta anos, mantendo cabeças tão vazias, em escasso tempo preenchíveis por “verdades” de teor moral e religioso, tão esquematicamente inconsistentes, tão socialmente alucinatórias e vocacionadamente assassinas, fazendo deles iluminados ou, mais exactamente, alumbrados guerreiros universalmente instituidores dessas suas “verdades” últimas?
»»»»» Escrevo esta nota sob o efeito recente da projecção de L’adieu à la nuit (André Téchiné, 2019).
António Sá
[22.08.2020]