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Archive for Agosto, 2020

notas & noções 22 (2ª série)

cabeças vazias…

 

»»»»» Cabeças vazias… Acontece haver esses jovens adultos que parece terem tanto espaço vazio na cabeça que ela pode, de um momento para outro, ser a folha em branco que se introduz numa impressora para de lá sair impressa com “verdades” tão inamovíveis e absolutas quanto indigentes e alucinadas — assim são “verdades” morais e religiosas, articuladas numa ideologia que situa o indivíduo dela imbuído numa posição de poder mágico sobre os outros: aqueles que não acederam à , por isso são seres a limine excluídos de qualquer hipótese de diálogo entre iguais, igualmente partícipes de um princípio de razão pura; aqueles que não vivem na crença “verdadeira”, que é inamovível, única, universal. Este poder, em simultâneo mágico e totalitário, permite decidir quem pode ser espoliado dos seus bens ou simplesmente morto, sem que tal constitua um crime ou um “pecado” em termos religiosos, porque se tratará de alguém que não participa da crença “verdadeira”. E, ao fazer este repertório do poder absoluto da crença religiosa, ocorre-me, lastro de memória, que tal corresponde em tudo ao poder das instituições inquisitoriais católicas, que assombraram a Europa desde a Idade Média ao século XVIII — o advogado e comediógrafo português António José da Silva foi queimado vivo no ano de 1739.

»»»»» Não tenho verdades, tenho hipóteses de explicação para fenómenos sociais correntes, que não passam necessariamente pelos ambientes familiares, em geral medianos, moderados, humildes, mas talvez mais pelo espectacular falhanço da escola ocidental, nas suas perpétuas derivas burocráticas, massificantes, inumanas — e consequente neandertalismo da socialização escolar dos nossos tempos.

»»»»» Mas voltando a esses seres humanos radicais na sua crença demencial, sociologicamente é já conhecido que são jovens com escolaridade liceal e empregos standard, exigindo mesmo alguma especialização. E quanto a eles, tenho sobretudo esta pergunta: qual o modo de chegarem a uma idade, compreendida entre os vinte-trinta anos, mantendo cabeças tão vazias, em escasso tempo preenchíveis por “verdades” de teor moral e religioso, tão esquematicamente inconsistentes, tão socialmente alucinatórias e vocacionadamente assassinas, fazendo deles iluminados ou, mais exactamente, alumbrados guerreiros universalmente instituidores dessas suas “verdades” últimas?

»»»»» Escrevo esta nota sob o efeito recente da projecção de L’adieu à la nuit (André Téchiné, 2019).

Téchiné 2 001 (2)

António Sá

[22.08.2020]

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notas & noções 21 (2ª série)

 

o verdadeiro conservador escreve cartas manuscritas

 

»»»»» O enjoo prévio de elaborar qualquer ideia sobre um conceito tão volátil quanto o de conservador. Numa parte de mim, haverá um conservador, dependendo de o quê; noutra parte, serei o oposto do que vulgarmente se considera um conservador. Esta última parte correspondendo ao que designaria de conservadorismo social. Sou favorável a todo o tipo de novas famílias, e considero até a tradicional família nuclear burguesa, assim chamada nos tempos revolucionários de 1968, é o mais doentio e destrutivo tipo de organização familiar que a civilização ocidental historicamente consolidou. Sou favorável ao aborto, à eutanásia e mesmo ao suicídio ainda que, quanto a este, não o possa defender, porque estaria a infringir as leis em vigor na grei portuguesa. Mas serei conservador em aspectos correntes dos hábitos lusos: hábitos de organizar a casa, com móveis de madeira e uma biblioteca, que inclui diversos tipos de dicionários e exemplares bibliográficos dignos de alfarrabistas conhecedores; hábitos alimentares nos quais incluo todas as comidas e bebidas nacionais, ibéricas e alentejanas, embora me esforce por manter um bom equilíbrio físico.

»»»»» E agora cheguei a esse ponto crítico do enjoo no início enunciado. O enjoo de articular conservadorismo e tecnologia, conceitos voláteis. Vi ou li algures, da parte não sei já de quem, uma declaração enfática de conservadorismo e tradicionalismo — gente jovem declarante, em idade activa, a armar-se em agente de uma estrita ordem antiga. E surgiu-me esta dúvida: como ser-se conservador, neste mundo dito global (mas pouco, sendo uns lugares mais globais do que outros) do século XXI, quanto ao uso corrente da tecnologia? Os conservadores assim tão manifestos usam que meios de comunicação? O telemóvel, a tablet, a internet, as redes sociais onde publicitam o conservadorismo que defendem? A la limite, os verdadeiros rotundamente auto-declarados conservadores deveriam limitar-se a escrever cartas manuscritas, enviando-as por correio, talvez até endereçadas a si mesmos, seguindo o exemplo do excelso Guilherme IX da Aquitânia, para todos os tempos apontado, no remoto século XII.

 

António Sá

[21.08.2020]

 

 

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