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Archive for Junho, 2023

Miniatura 34

Miniatura / 34 [Passar a roupa e pô-la a secar, cerca de 1930]

     Aplicar goma nos colarinhos e nas mangas das camisas era trabalho das lavadeiras, tudo perfeito para parecer que foi milagre ou feitiço que passou na roupa. Uma tarde por semana, pelo som cantante das vozes em umbundo, vozes em rítmico “hum-hum… hum-hum…”, manifestação da concordância uma com a outra e vice-versa, assentimento e continuidade da conversa, e pelo arrulhar das rolas abrigadas à sombra dos telheiros de colmo, esvoaçar dos banvos, trilar da passarada por onde havia ramo livre, a senhora recebia essas mulheres da sanzala adjacente, que vinham concertando em seu umbundo as suas vidas, e vinham concertar com a dona, já em português, as roupas lavadas que traziam em cestas, equilibradas no alto da cabeça sobre rodilhas de pano entrançado, feliz equilíbrio que prescindia do auxílio das mãos, só quando se agachavam ou tinham de vencer irregularidades do terreno elas usavam uma só mão, erguiam-na até às cestas, apoiavam-lhes os dedos para lhes assegurar a estabilidade.

     Vinham a sorrir, cumprimentavam a senhora com mistura de risos quase envergonhados e vénias exactas, nada do equilíbrio das cestas se perdia, e faziam silêncio quando entravam em casa pela porta lateral directamente para o quarto-das-arrumações-caseiras. Inclinando de golpe as cabeças, faziam deslizar para os braços, depois para a mesa grande as cestas carregadas de roupa, e não tiravam das cabeças as rodilhas, faziam já parte das anatomias de cada uma, até iam servir outra vez, quando levassem de volta as cestas, não vazias mas com trouxas de roupa para lavar. A roupa lavada ia sendo agora conferida pela dona e sujeita a uma primeira inspecção para detectar os malefícios dos insectos ou das aves sobre os tecidos. As roupas vêm impregnadas da luz azul, o calor que só havia aí no dia, a luz das águas rápidas a transparecer sobre pedras no fundo translúcido, desvios e coreografias, fuga nesta, naquela direcções de peixes cinza-prateado.

»»»»» Passar a roupa era com ferro maciço, pesado que era e maciço, com adorno de furos regulares talhados artisticamente em friso nas bandas superiores do bojo, utilmente talhados para deles sair o fumo dos carvões que Xatovera e Nunda providenciavam em bruto numa lata grande e calcinada, carvões que se metiam para arder numa braseira e daí para dentro do ferro-de-passar, onde se acamavam abrindo a tampa movível, de ferro, presa ao bojo por uma dobradiça e provida de um manípulo de madeira. Os carvões ardentes aqueciam a superfície lisa do fundo até escaldar; assim escaldada essa superfície passava e repassava os tecidos sobre os quais as lavadeiras salpicavam pingos de água. Elas as duas faziam este trabalho, levavam-no a termo com cuidado, repassando cada prega, dobra, costura de cada peça de roupa, atentas ao acaso de soltarem-se ciscos, faúlhas minúsculas dos carvões incandescentes. Estes acidentes, a que era preciso acorrer com rapidez, aconteciam em duas circunstâncias: quando, no princípio da tarefa, havia que encher com uma pinça metálica o bojo do ferro, metendo lá dentro os carvões em brasa, e mais tarde repetir estes gestos de alimentação quando os carvões se tinham consumido e a base do ferro tendia a arrefecer; mais insidiosa circunstância se, no decurso da tarefa de passar-a-ferro, faúlhas ardentes se soltavam dessas frestas laterais situadas no rebordo superior do ferro, frestas para a ventilação, para que os troços de carvão não se apagassem por falta de oxigénio, frestas de onde se liberta, além do fumo, qualquer ínfimo míssil errático, caindo a arder sobre qualquer peça de roupa, assim lhe imprimindo marca indelével. Um só cisco ardendo no aventuroso voo podia fazer, se caísse no pano, um ponto negro, até um eventual buraco com aurora chamuscada, e só seria remediado cerzindo o pano, trabalho de exigente minúcia. No pior dos casos, se não acudissem de imediato e o fogo alastrasse no tecido, a peça de roupa estava já era estrago irremediável, fosse pano-cru, chita, linho, seda, algodão. A mãe recomendava muito cuidado: só o princípio, a possibilidade de haver acidentes destes enruga as testas lisas femininas. Todo o trabalho, o de cuidar das coisas da casa e da vida, é elevado a um alto patamar de perfeição.

»»»»» Cada semana a mãe as via ajoelhadas na margem da nascente, onde esfregavam e batiam a roupa, inclinadas sobre as tábuas. Grandes tábuas-de-lavar-roupa, rectangulares e dentadas, cuja parte inferior mergulha em selhas inundadas de água e espuma de sabão-macaco, assim se chama o sabão azul-e-branco em barras. E ao fim de algum tempo de esfregar e bater roupa contra as tábuas, elas paravam; era momento de torcê-la e estendê-la a secar e a corar sobre estacas cravadas na clareira de ervas rasas, junto às margens do talude de onde jorrava a água da nascente, sol-e-sombra de nuvens nas roupas estendidas, lençóis, fronhas, camisas, calças, ceroulas, combinações, corpetes, fraldas, estendal sempre de roupas coloridas e roupas brancas a corar ao sol sobre estacas na clareira. E aí estendida a roupa ia ser vítima de manchas, picadas de mil insectos, larvas dos capins, nem eram picadas, eram dejectos ínfimos em forma de ponto negro, sujidade visível nas camisas, nas calças, nas saias e vestidos, lençóis, fronhas, ceroulas, combinações, corpetes, fraldas, qualquer que fosse a peça, esta seguia para lavar de novo, junto com a nova trouxa de roupa suja entregue para ser lavada — não era provável que manchas ocorressem duas vezes na mesma peça de roupa.

António Sá

[2012]

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Miniatura 27

Miniatura / 27 [Terror & tremor]

»»»»» Quando sentimos que a nossa cama oscila, imaginamos, nesse sonho que nos protege de acordarmos, o início de um voo, no qual conduzimos a cama a vaguear pelo quarto, os corredores, as escadas… “(…) quando estava quase a fechar os olhos, a cama começou a andar sozinha e desatou às voltas por todo o castelo. ‘Assim é bom’, disse ele, ‘mas mais depressa ainda é melhor.’ E a cama moveu-se então como se seis cavalos a puxassem, para cima e para baixo, por entre soleiras e escadas (…)”. Mas a minha cama não disparou em velocidade, como a cama do rapaz protagonista do Conto do rapaz que partiu para aprender a ter medo dos irmãos Grimm. O rapaz partira de casa dos pais, porque a única coisa que ele queria mesmo aprender era a ter medo, a “arrepiar-se”, que é expressão recorrente ao longo do conto. De facto, a minha cama só oscilou de um lado para outro, como barca em mar agitado, e eu só me arrepiei de medo depois de acordar com o balanço, e de ouvir o meu colega de quarto estremunhado, de pé, a dar-me a notícia de que estava a acontecer um tremor de terra. O que fiz a seguir não tem muita história, é a história de um pânico controlado: saltar da cama; desandar pelo corredor fora, onde muitos rapazes andavam para cá e para lá, assustados; descer as escadas, onde outros se acumulavam e davam vozes de comando desencontradas uns aos outros, sair, não sair — sobretudo, evitar os elevadores! — e eu saí para a grande colunada do átrio de entrada, onde alguns estavam vagando de pijama, como eu estava. Eram brasileiros — a residência de estudantes, que era o meu lar à época, situada na Avenida dos Estados Unidos da América, acolhia alguns estudantes universitários brasileiros, resultado de um convénio cultural entre Portugal e Brasil.

»»»»» Premonitório ter-me-ia sido o serão precedente, se eu, por artes mágicas, tivesse lido o que decerto não está nos astros, nem nos livros de feitiçaria — mas estava num filme. Fadado e desenfadado para uma cinefilia entranhada desde cedo, tinha ido ver, nesse precedente serão, um maldito Roman Polanski, que me proporcionara um estremecimento de terror: Rosemary’s baby (A semente do diabo, no kitsch deslavado do título português), filme da carreira norte-americana do realizador polaco, com estreia mundial em 1968. É considerado, unanimemente, um dos melhores filmes de terror de todos os tempos. Isso deve-se em parte a uma narrativa correntia e limpa de falsos lances espectaculares — o terror avança subterraneamente, materializado num amável casal de vizinhos idosos que, vai-se vendo e percebendo, dedicam os seus tempos úteis à leitura de livros esotéricos e de feitiçaria, e agregam uma pequena seita dada a cultos satânicos. A amável e prestável idosa, personagem estrelada, como se diz no Brasil, por uma inefável e trémula Ruth Gordon, vai levando de sua casa copos de leite que brilham como se tivessem uma lâmpada dentro, para oferecê-los à jovem vizinha grávida, protagonizada por uma muito frágil Mia Farrow. Esses copinhos de leite trémulos e ternurentos conteriam uma poção mágica, cujo efeito haveria de fazer com que a jovem vizinha desse à luz um diabo, ou extraterrestre, ou seja o que fosse. Mas, artes mágicas do cinema de Polanski: a câmara subjectiviza tanto a perspectiva da jovem grávida, sujeita a alucinações, que, ambiguidade máxima, o espectador fica na dúvida sobre se assistiu de facto ao nascimento de um bebé-diabo, ou se tudo não terá passado de uma psicose alucinatória da jovem mãe perturbada. Ilusão das ilusões — tudo é ilusão.

»»»»» A ilusão do tremor de terra, sentido sobretudo no centro e sul do país, aconteceu no dia 28 de fevereiro de 1969, às 3h41 da madrugada. A ilusão de Rosemary’s baby foi projectada na sessão das 21h30 de 27 de fevereiro do mesmo ano, no Cinema Alvalade, sala ampla, equipada para a projecção de filmes em 70mm, com plateia e balcões, bengaleiro no átrio inferior e, no átrio superior, um bar para os intervalos das sessões.

Cinema Alvalade 1 001

António Sá

[10.04.2020]

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Miniatura 33

Miniatura / 33 [Perseguições de bicicleta]

»»»»» Rapazes do Colégio Adamastor pedalam seguindo as raparigas. Vêm das aulas ou desertam, dois rapazes, encontram-nas e seguem-nas, às duas Fátimas, uma a Fátima Lopes, que mantém ou começa namoro com um deles, assim encontro e perseguição nem acontecem por acaso, o namorado em curso ou futuro sabia que a ia encontrar ali, ter com ela à saída do cemitério, encontro na agenda de namorados em curso ou futuros, quando se agenda em folha solta de árvore. Encontro falado e acendido entre quem se quer ver para ver quanto se quer, ocasião de saber se outras ocasiões hão-de haver. Esse rapaz enamorado tem de ver Fátima Lopes agora e, nas muitas conversas de rapazes com o amigo que segue com ele de bicicleta, falou-lhe na amiga da namorada, Fátima também, miúda muito gira. O amigo é um que viu esta Fátima no outro dia, rapariga esguia de pernas altas. E o amigo do namorado-acaso da Fátima Lopes arde de desejo pela amiga desta, jovens desejos. O namorado-acaso de Fátima Lopes persegue a namorada-a-ter, desviando-a para um descampado algures além do cemitério, matos baldios de ninguém salvo os bichos-do-mato, para aí ela e ele se desvão perdidos e achados, enquanto o outro rapaz persegue a outra Fátima, que é Fátima Sá; e esta, na bicicleta depressa pedalada, não se desvia do caminho que deve ser o seu, caminho de casa. Pedala tanto quanto o seu fôlego jovem já nem lhe permite, e não pedala para nenhum descampado perdido onde se desse por perdida ou achada, pedala pela sua integridade-menina para a “casa do senhor Condeço”, seu lar urbano, escarmentada que vivia quanto ao estado e género masculinos, lembrando-para-sempre a desexperiência de assalto sexual do que há-de estar a-salvo de condenação senhor Adelino, cliente honorário da ourivesaria, lá caído mais vezes que menos, impante de desporto e despautério contra adeptos energúmenos que estragam a beleza da nobre competição futebolística, ressumante de chalaças torpes sobre maridos cornos e mulheres desviadas, que Joaquim, ao balcão da loja, digere com sorrisos azulados, lembrando constrangido circunstâncias desviantes da mulher sua esposa, e fosse o que fosse o serem “desviadas” de caminhos que sejam os bons — entretanto eram, mas neste outro-agora já nem vêm a ser, quem-sabe quais hão-de ser os caminhos bons deste mundo.

»»»»» Elas eram amigas esses dias, Fátima Lopes com cerca de três anos mais, mas a perseguição de bicicleta sofrida fez Mariazinha de Fátima Sá rever o quanto amigas chegadas haviam de ser, não queria voltar a ver-se perseguida por aquele rapaz ou qualquer outro assim voraz como aquele, vacinada até-quando contra voracidades masculinas. Mas continuou a encontrar-se com a amiga sua xará, prevenindo-a que não voltava a ter passeios de bicicleta que fossem de perseguição de rapazes amigos do namorado. Foram sendo amigas de passeios e confidências juvenis, só até que houve perturbação por gravidez súbita que sofreu Fátima Lopes, sabe quem das fugas nos descampados com o namorado da bicicleta. Assim aqui se conta que, quando a gravidez se tornou notável, tal evidência provocou medido escândalo social à proporção da cidade, e o caso veio a falar-se aos balcões da ourivesaria. O irmão Joaquim, sabendo da amizade das raparigas, falou conselheiro com Mariazinha, intimando-a a não mais se encontrar com aquela amiga, que era rapariga “pouco digna”, lhe seria “mau exemplo” e “má companhia”, além de lhe trazer a ela, Mariazinha, fama de rapariga da mesma laia. Apesar destas razões, Maria de Fátima foi-se encontrando com a confidente amiga clandestinamente, tanto quanto era de ser, não achava justo prescindir dessa amizade, só por a amiga não respeitar as leis da religião e do “decoro”, como explicava o irmão Joaquim, essas leis que a proibiam de ter desejos sexuais anteriores a um virtuoso casamento virgem, pese a que Mariazinha vivesse impregnada de religião, que tão incutida lhe fora, rezas diárias e missas dominicais, pelo paizinho devoto. Assim as amigas voltaram a pedalar até esse ainda pouco povoado cemitério colonial e branco de Nova Lisboa, onde Mariazinha rendia regular visita à campa da mãe que não conhecera, e pela qual tinha veneração de ausência primordial.

António Sá

[17.12.2020]

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