Miniatura / 34 [Passar a roupa e pô-la a secar, cerca de 1930]
Aplicar goma nos colarinhos e nas mangas das camisas era trabalho das lavadeiras, tudo perfeito para parecer que foi milagre ou feitiço que passou na roupa. Uma tarde por semana, pelo som cantante das vozes em umbundo, vozes em rítmico “hum-hum… hum-hum…”, manifestação da concordância uma com a outra e vice-versa, assentimento e continuidade da conversa, e pelo arrulhar das rolas abrigadas à sombra dos telheiros de colmo, esvoaçar dos banvos, trilar da passarada por onde havia ramo livre, a senhora recebia essas mulheres da sanzala adjacente, que vinham concertando em seu umbundo as suas vidas, e vinham concertar com a dona, já em português, as roupas lavadas que traziam em cestas, equilibradas no alto da cabeça sobre rodilhas de pano entrançado, feliz equilíbrio que prescindia do auxílio das mãos, só quando se agachavam ou tinham de vencer irregularidades do terreno elas usavam uma só mão, erguiam-na até às cestas, apoiavam-lhes os dedos para lhes assegurar a estabilidade.
Vinham a sorrir, cumprimentavam a senhora com mistura de risos quase envergonhados e vénias exactas, nada do equilíbrio das cestas se perdia, e faziam silêncio quando entravam em casa pela porta lateral directamente para o quarto-das-arrumações-caseiras. Inclinando de golpe as cabeças, faziam deslizar para os braços, depois para a mesa grande as cestas carregadas de roupa, e não tiravam das cabeças as rodilhas, faziam já parte das anatomias de cada uma, até iam servir outra vez, quando levassem de volta as cestas, não vazias mas com trouxas de roupa para lavar. A roupa lavada ia sendo agora conferida pela dona e sujeita a uma primeira inspecção para detectar os malefícios dos insectos ou das aves sobre os tecidos. As roupas vêm impregnadas da luz azul, o calor que só havia aí no dia, a luz das águas rápidas a transparecer sobre pedras no fundo translúcido, desvios e coreografias, fuga nesta, naquela direcções de peixes cinza-prateado.
»»»»» Passar a roupa era com ferro maciço, pesado que era e maciço, com adorno de furos regulares talhados artisticamente em friso nas bandas superiores do bojo, utilmente talhados para deles sair o fumo dos carvões que Xatovera e Nunda providenciavam em bruto numa lata grande e calcinada, carvões que se metiam para arder numa braseira e daí para dentro do ferro-de-passar, onde se acamavam abrindo a tampa movível, de ferro, presa ao bojo por uma dobradiça e provida de um manípulo de madeira. Os carvões ardentes aqueciam a superfície lisa do fundo até escaldar; assim escaldada essa superfície passava e repassava os tecidos sobre os quais as lavadeiras salpicavam pingos de água. Elas as duas faziam este trabalho, levavam-no a termo com cuidado, repassando cada prega, dobra, costura de cada peça de roupa, atentas ao acaso de soltarem-se ciscos, faúlhas minúsculas dos carvões incandescentes. Estes acidentes, a que era preciso acorrer com rapidez, aconteciam em duas circunstâncias: quando, no princípio da tarefa, havia que encher com uma pinça metálica o bojo do ferro, metendo lá dentro os carvões em brasa, e mais tarde repetir estes gestos de alimentação quando os carvões se tinham consumido e a base do ferro tendia a arrefecer; mais insidiosa circunstância se, no decurso da tarefa de passar-a-ferro, faúlhas ardentes se soltavam dessas frestas laterais situadas no rebordo superior do ferro, frestas para a ventilação, para que os troços de carvão não se apagassem por falta de oxigénio, frestas de onde se liberta, além do fumo, qualquer ínfimo míssil errático, caindo a arder sobre qualquer peça de roupa, assim lhe imprimindo marca indelével. Um só cisco ardendo no aventuroso voo podia fazer, se caísse no pano, um ponto negro, até um eventual buraco com aurora chamuscada, e só seria remediado cerzindo o pano, trabalho de exigente minúcia. No pior dos casos, se não acudissem de imediato e o fogo alastrasse no tecido, a peça de roupa estava já era estrago irremediável, fosse pano-cru, chita, linho, seda, algodão. A mãe recomendava muito cuidado: só o princípio, a possibilidade de haver acidentes destes enruga as testas lisas femininas. Todo o trabalho, o de cuidar das coisas da casa e da vida, é elevado a um alto patamar de perfeição.
»»»»» Cada semana a mãe as via ajoelhadas na margem da nascente, onde esfregavam e batiam a roupa, inclinadas sobre as tábuas. Grandes tábuas-de-lavar-roupa, rectangulares e dentadas, cuja parte inferior mergulha em selhas inundadas de água e espuma de sabão-macaco, assim se chama o sabão azul-e-branco em barras. E ao fim de algum tempo de esfregar e bater roupa contra as tábuas, elas paravam; era momento de torcê-la e estendê-la a secar e a corar sobre estacas cravadas na clareira de ervas rasas, junto às margens do talude de onde jorrava a água da nascente, sol-e-sombra de nuvens nas roupas estendidas, lençóis, fronhas, camisas, calças, ceroulas, combinações, corpetes, fraldas, estendal sempre de roupas coloridas e roupas brancas a corar ao sol sobre estacas na clareira. E aí estendida a roupa ia ser vítima de manchas, picadas de mil insectos, larvas dos capins, nem eram picadas, eram dejectos ínfimos em forma de ponto negro, sujidade visível nas camisas, nas calças, nas saias e vestidos, lençóis, fronhas, ceroulas, combinações, corpetes, fraldas, qualquer que fosse a peça, esta seguia para lavar de novo, junto com a nova trouxa de roupa suja entregue para ser lavada — não era provável que manchas ocorressem duas vezes na mesma peça de roupa.
António Sá
[2012]